Análise do Documentário: O século do Ego (The Century of the Self)
Mostra a trajetória da psicanálise desde Freud até sua apropriação pelo marketing e pela política, o filme escancara como nossos desejos, tão íntimos, foram capturados para servir ao consumo e ao controle social.
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© Pannera Rodrigues
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Sinopse
O Século do Ego (The Century of the Self) é um documentário da BBC, dirigido por Adam Curtis, dividido em quatro episódios. A obra percorre o século XX desde os anos 1920, quando a psicanálise de Freud começa a ganhar terreno, até a sua apropriação por estratégias de marketing, propaganda e engenharia social.
O documentário investiga como as ideias de Freud foram utilizadas, especialmente nos Estados Unidos, para manipular as massas e moldar uma sociedade de consumo. Examina ainda a guinada crítica das décadas de 1960 e 70, com a ascensão de movimentos sociais e correntes psicoterapêuticas que desafiaram a centralidade do inconsciente.
Curtis articula brilhantemente a psicanálise, a publicidade, a política e o capitalismo neoliberal, revelando como o estudo da mente se tornou uma ferramenta de controle subjetivo — transformando desejos íntimos em alavancas de mercado.
Quando terminei The Century of the Self, confesso: fiquei com aquele nó na garganta de quem percebe que o inconsciente, esse terreno tão íntimo e misterioso, virou playground para estratégias de marketing e manipulação em massa. É Freud sem divã, Lacan sem barra — e a pulsão de morte disfarçada de vitrine.
Dirigido por Adam Curtis, esse documentário em quatro partes traça a gênese e o uso da psicanálise especialmente as ideias de Freud, Anna Freud e, mais centralmente, Edward Bernays (sobrinho de Freud) na construção da sociedade de consumo do século XX. Bernays transplantou os conceitos freudianos para a esfera da propaganda, ajudando a criar o “consumidor emocional”, uma figura que compra não por necessidade, mas por identificação, fantasia e desejo.
1. Do inconsciente clínico ao inconsciente político:
O que Freud pensou como terreno de elaboração do sujeito, Bernays viu como máquina de indução de desejo. A lógica da pulsão, da falta e da fantasia passou a ser explorada para moldar o comportamento de massas. A clínica virou laboratório de marketing. E o que antes era sintoma, agora é tendência.
2. A fantasia como vetor de consumo:
Se, como Lacan diz, o desejo é sempre o desejo do Outro, o publicitário moderno aprendeu a fabricar esse “Outro”. O capitalismo avançado constrói ideais, estilos de vida, corpos desejáveis — e vende a ilusão de completude que falta ao sujeito. O shopping center vira espelho do estádio do espelho: cada vitrine devolve uma imagem idealizada que promete tapar o furo estrutural. Mas é claro: nunca tapa. E por isso você compra de novo.
3. Do Eu forte ao Eu domesticado:
Anna Freud e os psicólogos do pós-guerra buscaram fortalecer o Ego contra as forças pulsionais — mas o neoliberalismo fez o oposto: estimulou o desejo, domesticou a rebeldia e internalizou o controle. O “autoconhecimento” virou autoaperfeiçoamento para o mercado. A terapia, um upgrade emocional. O inconsciente, uma planilha de metas.
4. Controle social disfarçado de liberdade individual:
A promessa era emancipação: seja você mesmo, consuma o que quiser, seja livre. Mas a lógica do documentário revela o oposto: quanto mais acreditamos estar escolhendo livremente, mais estamos obedecendo a um desejo que nos foi dado pronto. A ilusão da escolha esconde o recalque coletivo: a singularidade virou mercadoria.
O que me assusta nesse documentário não é só o uso político da psicanálise é perceber o quanto nos tornamos cúmplices disso. Quantas vezes você já comprou algo “porque era a sua cara”? Quantas vezes um algoritmo pareceu te conhecer melhor do que você mesmo? Talvez a questão não seja mais quem somos, mas quem nos fabricou.
A psicanálise freudiana apostava na força do Ego como mediador entre os impulsos inconscientes e as exigências da realidade. Era ele quem, idealmente, colocaria ordem na casa psíquica. Mas, no documentário, vemos o Ego ser reformulado, não como um agente ético, mas como um consumidor emocionalmente gerenciado.
Anna Freud, nos anos pós-guerra, buscava fortalecer o Ego para que as crianças se ajustassem socialmente — o ideal era o sujeito adaptado. Só que essa ideia foi rapidamente apropriada por governos e corporações, que perceberam que um Ego “equilibrado” podia ser também um Ego domesticado: previsível, manipulável, e — mais importante — moldável ao gosto do mercado.
O resultado? Um Ego plastificado, que mede autoestima pelo espelho do Instagram, autoconhecimento pelos quizzes da internet, e regulação emocional pelos slogans de campanhas publicitárias. Então, nisso tudo, o Ego deixou de ser a instância que negocia com a realidade para se tornar o porta-voz do ideal de marca.
The Century of the Self não é só um documentário sobre propaganda, é uma genealogia da alma moderna. Mostra como a psicanálise foi sequestrada por um sistema que prefere sujeitos que desejam consumir a sujeitos que ousam desejar. E nos convida a uma resistência radical: escutar o inconsciente, sim, mas fora da lógica da vitrine.
O Século do Ego (The Century of the Self), está disponível gratuitamente no YouTube com legendas em português
por Pannera Rodrigues, psicóloga e psicanalista
Março de 2025