Análise Psicanalítica de "Lua de Fel" (Bitter Moon, 1992)
Vem comigo para essa análise que tem várias nuances da psicanálise.
ANÁLISE DE FILMEPERVERSÃOSADISMOMASOQUISMOPSICANÁLISEFREUDLACANGOZOFANTASIADESEJO
Dirigido por Roman Polanski, Lua de Fel acompanha Nigel e Fiona, um casal britânico em uma viagem de cruzeiro, que acaba se envolvendo com o misterioso casal Oscar e Mimi. A história é contada em flashbacks intensos por Oscar, um escritor decadente em cadeira de rodas, que narra a Nigel, em detalhes sórdidos, a história do amor obsessivo e da degradação erótica entre ele e Mimi. O filme mergulha em uma espiral de paixão, perversão, destruição e dominação, onde os limites entre prazer e dor, amor e ódio, são levados ao extremo.
© Pannera Rodrigues
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Lua de Fel – Amor, dor e o gozo como abismo
Quando assisti Lua de Fel na época da faculdade, confesso: fiquei chocada, perturbada. Havia algo ali que me escapava, que me incomodava mais do que eu conseguia elaborar. Parecia um filme apenas doente, excessivo, transgressor por transgressão. Mas ao revisitar agora, anos depois, percebo que talvez o que me assustava era justamente o espelho que ele erguia não só da sexualidade, mas da pulsão em sua face mais crua, sem disfarces civilizatórios. Agora, consigo ver nuances, camadas, destinos pulsionais em jogo. E para você estudante que veio atrás dessa análise, seja bem-vindo, bem-vinda, espero que te direcione e esclareça suas dúvidas,
Sadismo e masoquismo como destinos da pulsão
Inspirando-se em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (Freud, 1905) e em Pulsões e destinos da pulsão (Freud, 1915), podemos ler o vínculo entre Oscar e Mimi como uma dança pulsional que alterna posições entre ativo e passivo, domínio e submissão. Oscar, inicialmente, encarna o sadismo clássico: subjuga, humilha, brinca com a dor e a destruição de Mimi. Mas à medida que a relação se intensifica, os papéis se invertem — e o que parecia domínio se revela fragilidade. Como lembra (Capanema 2010, p. 8): “O sadismo se expressa no exercício imperativo do poder e tem como forma de satisfação condutas que levam à sujeição e aos maus-tratos provocados ao outro.” A inversibilidade entre sadismo e masoquismo aparece como expressão da complexidade da pulsão sexual.
Prazer na dor e o erotismo do abismo
O erotismo apresentado por Polanski está longe de qualquer ideal romântico. É um campo de batalha onde o prazer se mistura à dor, à humilhação, à entrega irrestrita. A dissolução do eu no outro, ora desejada, ora temida, é uma das expressões mais inquietantes da experiência masoquista. Como afirma (Andrade, 2011, p. 56), “a problemática do sadismo e do masoquismo se estrutura em torno da obtenção de prazer através da submissão ao sofrimento.”
O amor como guerra de subjetividades
A máxima lacaniana “amar é dar o que não se tem a quem não o quer” reverbera com força na relação entre Oscar e Mimi. Oscar busca em Mimi um objeto de gozo absoluto, moldável ao seu desejo. Mimi quer ser amada plenamente e, ao não encontrar isso, responde com violência — devolve ao outro a dor que lhe foi imposta. Esse amor não é encontro, é colonização; não é laço, é captura.
A destruição como forma de vínculo
A pulsão de morte ronda todo o filme. Há uma volúpia no arrastar o outro para o fundo, na manutenção de um vínculo que, mesmo apodrecido, ainda sustenta uma forma de gozo. Mimi mutila Oscar emocionalmente e depois o castra, literalmente. Oscar a rebaixa, depois a venera. Ambos estão presos num circuito de repetição em que o sofrimento é o que ainda resta do laço amoroso.
Gozo como excesso – além do sentido e do prazer
Na releitura de (Lacan 1963) no Seminário XX, o gozo é aquilo que escapa à linguagem, ao sentido — é o excesso, o real cru que insiste. Freud, em 1920, já havia descrito esse impulso sob a forma de pulsão de morte: uma compulsão à repetição que ultrapassa o princípio do prazer. Lua de Fel é uma encenação desse gozo que não se satisfaz, que não se resolve, que retorna como um resto indomável.
Oscar goza não porque ama, mas porque Mimi encarna o ponto cego de seu desejo aquela ferida narcísica que insiste. Mimi, por sua vez, se torna o agente do gozo: toma o controle quando Oscar já não consegue desejar. Ela exige não amor, mas castração. O que está em jogo ali não é mais prazer, é o limite do próprio sujeito.
A sexualidade como território de guerra
Nos Três Ensaios (1905), Freud destaca que o sadismo e o masoquismo ocupam posição especial entre as perversões por articulares a oposição entre atividade e passividade, uma das marcas fundamentais da sexualidade. Em Lua de Fel, essa oscilação aparece com uma intensidade brutal: Oscar vai da sedução à degradação, Mimi da entrega à dominação. Cada um se oferece como tela da fantasia do outro, até que a fantasia se rompa e reste apenas o gozo cru, sem palavra, fora da linguagem.
Obsessão e Compulsão: A Encenação da Ruína
Em Lua de Fel, a figura de Oscar revela-se marcada por uma estrutura obsessiva: ele goza não apenas na experiência vivida com Mimi, mas sobretudo na repetição compulsiva de sua narrativa. Contar sua história é reencená-la, reatualizar um gozo que já não é prazer, mas fixação pulsional. Ao transferir essa encenação para Nigel, Oscar perpetua sua própria ruína, seduzindo o outro para torná-lo cúmplice de sua destruição. O gozo, aqui, é a repetição da perda, do poder, da dor uma tentativa de capturar o insimbolizável. A lógica é freudiana na compulsão à repetição e lacaniana no gozo como excesso: algo que escapa à linguagem e retorna como espectro, como sintoma que não cessa de se inscrever. Oscar é, ao mesmo tempo, carrasco e vítima do próprio desejo.
E tem a cena, quando Nigel acha que vai realizar seu desejo com Mimi finalmente tocando o objeto de sua fantasia é Oscar quem entra em cena e o "castra", no sentido simbólico: frustra, interrompe, impede. É ele quem detém o controle do gozo, mostrando que ninguém ali escapa à dinâmica de dominação. Nigel se vê impotente, não por falta de desejo, mas por confrontar seu limite: o desejo do outro. Essa cena escancara o eixo obsessivo do filme onde o desejo nunca se realiza, apenas se encena, e a frustração é parte constitutiva do gozo.
Referências:
CAPANEMA, Luciana Mara França Moreira. Sadismo e masoquismo na obra de Freud e no espaço analítico. 2010. Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG, Belo Horizonte, 2010.
ANDRADE, Fernando Cézar Bezerra de. A metapsicologia do masoquismo em Freud e Laplanche. Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 27, n. 1, p. 53–61, jan./mar. 2011.
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer (1920). In: FREUDIAN STUDIES. Rio de Janeiro: Imago, 2000.
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Pulsões e destinos da pulsão (1915). In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. O problema econômico do masoquismo (1924). In: ______. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: A angústia (1962-63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

