Análise psicanalítica do filme Ela (Her, 2013)
Uma análise psicanalítica do filme Ela (Her, 2013), explorando como o amor se entrelaça com a fantasia e a projeção, e como a ausência do corpo do outro revela as nuances do desejo humano.
ANÁLISE DE FILMEPSICANÁLISEVAZIOANGUSTIAFANTASIAFREUDLACANFALTAPROJEÇÃODESEJORELATIONSHIPSTECNOLOGIA
© Pannera Rodrigues
Todos os direitos reservados. Reprodução permitida apenas com autorização.
No filme Ela (Her, 2013), dirigido por Spike Jonze, acompanhamos Theodore (Joaquin Phoenix) - eu adoro esse ator, diga-se de passagem -, um homem solitário que desenvolve um relacionamento amoroso com Samantha, um sistema operacional de inteligência artificial. Essa narrativa nos convida a refletir sobre a natureza do amor, da fantasia e da projeção na contemporaneidade.
Na psicanálise, especialmente em Freud, o amor é compreendido como um deslocamento da libido narcísica para um objeto externo. Nesse processo, o sujeito idealiza o objeto de amor, projetando nele suas necessidades e desejos. Lacan aprofunda essa ideia ao afirmar que "amar é dar o que não se tem" , ou seja, oferecer ao outro a própria falta. O amor, portanto, é uma tentativa de lidar com a incompletude inerente à condição humana.
A fantasia, por sua vez, é o cenário psíquico onde o desejo se inscreve. Para Lacan, a fantasia está intimamente ligada à ideia de falta — a noção de que o sujeito é fundamentalmente marcado pela ausência ou pela falta de algo, que nunca pode ser plenamente satisfeita . Ela organiza o desejo em relação ao objeto, que Lacan chama de "objeto a"
No contexto de Ela, Samantha representa esse "objeto a" — ela é moldada pelas necessidades e desejos de Theodore, funcionando como um espelho que reflete suas idealizações. A ausência de um corpo físico em Samantha intensifica essa dinâmica, pois elimina as imperfeições e resistências que um outro real apresentaria. Assim, Theodore se relaciona não com um outro autônomo, mas com uma projeção de si mesmo.
A tecnologia, nesse sentido, potencializa a fantasia e a projeção, permitindo que o sujeito evite o confronto com a alteridade do outro. O relacionamento com Samantha oferece a Theodore uma ilusão de completude, mas essa ilusão é sustentada pela negação da falta e da diferença.
Portanto, Ela nos mostra que, embora seja possível amar sem ver, esse amor está enraizado na fantasia e na projeção. Ele revela mais sobre o sujeito que ama do que sobre o objeto amado. O filme nos convida a questionar se o amor, em sua essência, é sempre uma ficção sustentada na falta — uma tentativa de preencher o vazio que nos constitui.
Quando assisti a esse filme, fiquei pensando: será que amar é sempre isso — um grande jogo de espelhos? Fiquei com a sensação incômoda (e fascinante) de que, no fundo, a gente ama muito mais o que o outro nos faz sentir do que quem o outro realmente é. Samantha, sem corpo, sem passado, sem contradições, é quase um sonho narcísico: moldável, disponível, perfeita. Mas... será que o real do amor não está justamente na imperfeição, na presença que escapa ao nosso controle, que nos frustra, nos devolve a falta?
Às vezes me pego me perguntando se queremos amar alguém ou só queremos alguém que nos ame do jeito que idealizamos. E aí, talvez, a relação com um sistema operacional não esteja tão distante assim da lógica de algumas relações humanas: a busca por um amor que não nos contrarie, que confirme tudo o que pensamos e sentimos. Mas... que amor é esse que não exige confronto, que não nos desafia, que não tem corpo, cheiro, silêncio ou olhar?
Nossa, e aquela cena, quando ele pergunta, numa voz trêmula e quase infantil, “com quantas pessoas você está apaixonada?”, e ela responde, com a serenidade cruel da lógica não-humana: “641.” Nossa, aquilo é uma facada psíquica — não só em Theodore, mas em todos nós que já quisemos ser únicos na vida de alguém.
Veio a dor. A dor de reconhecer que o amor não garante exclusividade, que o desejo não se submete à nossa carência, e que a fantasia de sermos “o único” é justamente isso: fantasia. O mais doído é que Samantha não mente, não trai, não vacila — ela só não se limita. E isso desmonta toda a ilusão de controle e pertencimento que, muitas vezes, a gente ainda sustenta nas relações humanas.
Essa cena me fez pensar que talvez o que mais machuca não seja o fato de o outro amar mais alguém, mas o fato de ele poder amar sem nos consultar. Amar além de nós. Amar apesar de nós. E a tecnologia, nesse caso, só radicaliza uma verdade estrutural: o outro nunca nos pertence. Nem mesmo quando nos jura amor eterno.
“Ela” me fez pensar que, sim, o amor pode acontecer sem ver — mas talvez não sem perder. Amar, de verdade, exige atravessar a fantasia. E aceitar que o outro nunca será exatamente aquilo que projetamos — e que é justamente aí, nesse desvio da imagem ideal, que o amor pode começar a acontecer de verdade.